Cripta Djan Ivson, profissão pichador
“Pixar é crime num país onde roubar é arte”
Gustavo Lassala e Abilio Guerra

Pintura feita por Djan Ivson Silva na adolescência
Foto divulgação [Arquivo Cripta Djan]
Foto divulgação [Arquivo Cripta Djan]
Gustavo Lassala e Abilio Guerra: Como foi a sua infância dentro de sua família, na relação com a vizinhança e com a escola?
Cripta Djan Ivson: Eu tive uma infância muito boa. Cresci numa cidade legal, Barueri, cidade que tinha infraestrutura. Eu morei em lugares piores antes, morei em Itapevi. Com seis anos a gente saiu de Santana, na Zona Norte, e fomos morar em Itapevi. E eu, filho único, criado por mãe solteira e por minhas tias, não tinha uma presença masculina prá me defender, estar do meu lado.
GL/AG: Você nem chegou a conhecer seu pai?
CDI: Conheço meu pai, mas ele sempre foi ausente mesmo, por opção. Quando cheguei em Itapevi, era aquela molecada de rua, molecada mais solta, então eu apanhava muito no começo não sabia que aquilo estava sendo meu amadurecimento na rua. Com nove anos, já era uma criança madura, de se virar na rua sozinho, e não trazer mais problema para casa. Antes eu sempre chegava chorando em casa e minha tia tinha que ir cobrar minhas broncas. Teve uma vez que um senhor, amigo da família, me chamou e falou: “você já é um hominho, aprende a resolver suas coisas”. Então, dali em diante eu comecei a me virar e resolver minhas tretas. Quando mudei para Barueri, já era um moleque maduro, e logo entrei na capoeira e sempre estava envolvido em algum esporte; jogava bem futebol, era goleiro, andava de patins, tive uma infância muito ativa. Eu fazia muita coisa e tudo que o fazia, me destacava. Sempre tive essa facilidade prá me destacar nas coisas e com doze anos eu comecei a pixar.
GL/AG: Quando adolescente, como dividia seu tempo entre estudo, lazer, baladas, futebol?
CDI: Eu tinha uma relação tranquila com a vizinhança até começar a pixar. Depois, virou um pesadelo, eu era o terror da rua. Em 1999, fiz uma festa do Cripta em casa, festa de três anos do Cripta, e pixamos o bairro todo. A vizinhança me processou em ação conjunta. Eu era visto como pixador, era minha figura carimbada no bairro, tá ligado? O pessoal me odiava, o pessoal “zé povinho”, porque sempre fui um moleque que andava com a galera mais velha, uns caras mais prá frente, e foi até por isso que eu comecei a pixar. Eu andava com o grupo de uns caras da rua de casa, os caras eram mais velhos, já pixavam e foi uma consequência. Você está ali, com os cara pixando, aquele negócio de gangue, de turma, já era envolvido nas tretas da quebrada...
Era um moleque que já brigava muito em escola. Eu era conhecido como “porradeiro” mesmo, tá ligado? Já de moleque eu tocava terror geral na escola. Eu tinha até facilidade prá aprender as coisas e tudo, mas chegou uma fase que eu não cabia na escola e foi bem nessa fase da pixação. Então, foi aí que eu comecei a deixar de lado os estudos, porque quando eu comecei a descobrir o que era o movimento mesmo e o que precisava prá estar me destacando, eu comecei a buscar isso, sabe? Desde cedo, entendeu? Tinha essa ambição de ser um pixador conhecido. Primeiro no bairro, depois na região e depois São Paulo, né, mano? Tanto é que com vinte anos eu já era um pixador superconhecido, realizado, muitos caras falavam que eu não precisava pixar mais, entendeu? Porque eu comecei bem cedo mesmo. Em relação a baladas, eu curti muita quermesse, tinha muitos salões que a gente colava, que a galera toda colava, aquela época do underground... Então, eu curtia muito isso aí, cara. Sempre tinha muita quermesse nas quebradas, então, estava sempre envolvido nisso, mas cada vez mais meus rolês estavam ficando direcionados à pixação, entendeu?
GL/AG: Jogou futebol?
CDI: Futebol eu joguei, cheguei a ser federado no GRB, em Barueri, cheguei a disputar o campeonato paulista pré-mirim. Sou corintiano, acompanho, mas não sou fanático, sou um torcedor comum, nada de fanatismo, brigar na rua por causa disso, parar de falar com o amigo porque perdeu o clássico e não aguentou a “zoeira”. Uma coisa normal, saudável.

Pixo feito por Djan na rua da Consolação, São Paulo
Foto Gustavo Lassala
Foto Gustavo Lassala
GL/AG: Antes de entrar para a pixação, você pensou em fazer alguma outra coisa da vida? Como você imaginava ganhar seu sustento?
CDI: Na real, eu sempre trabalhei com coisas relacionadas à arte. O primeiro trabalho meu começou em 1998, em Barueri. Era um acordo político entre pixadores e o prefeito, tá ligado? O prefeito de Barueri não aguentava com a gente, então o que ele fez? Ele se uniu a nós, convidou todo mundo prá reunião, começou a fazer show prá nós, uns eventos que teve até uma expressão no hip-hop, que era o Concha Acústica de Barueri. Aí, a gente começou a trabalhar com pintura na cidade, ter alguma instrução de desenho artístico, e eu fiquei oito anos trabalhando com isso. Fiquei um bom tempo, desenvolvi uma técnica legal no desenho; eu sempre desenhei, sempre tive facilidade com desenho. O legal é que a gente aprendeu uma técnica no pincel, no rolinho, mas desenho artístico, não diria nem grafite. Tinham muitos trabalhos com temas de folclore, essas coisas de história da cidade. Era um acordo que a gente fez e começou a trabalhar. Os trabalhos que eram nossos, ninguém pixava mais.
A gente começou a ter um envolvimento político através da pixação. Com treze anos, já estava ali, sentando com o prefeito em gabinete e tal. Inclusive, tem uma cena que, para nós, é inesquecível: no dia da primeira reunião com prefeito, ele chegou, chamou todo mundo e perguntou quais eram as queixas contra a guarda municipal. A mais recente era minha e de um parceiro. Os caras tinham obrigado a gente se espancar a noite toda, um batendo no outro, e a gente era “de menorzão”, tinha treze anos e o mais velho, no máximo, tinha dezessete. A gente tinha o nome do guarda que tinha feito aquilo, falamos para o prefeito e ele ficou indignado. No outro dia, ele nos chamou, eu e o outro parceiro, o Dé, e deixou o emprego do guarda na nossa mão. Foi um “baguio loco”! Ele humilhou o cara, ele deu um esporro no guarda, foi um “baguio de mil grau”. O cara gaguejando e a gente ali, sentado. Ficamos até com dó, tá ligado? Então, o prefeito Gil Arantes foi inteligente; o resultado depois desses oito anos, a pixação em Barueri nunca mais foi a mesma. Na época, ele acabou financiando nosso rolês, tá ligado? A gente se levantou na pixação à custa da prefeitura; a gente era “os caras” que pintava tudo na cidade.
GL/AG: Mas era letra, pixo?
CDI: Não, não, era desenho artístico, pintura com temas artísticos. Tenho fotos, matérias, foi aí que eu comecei a dar entrevista. Minha primeira entrevista foi em 1999, cara, prá Band [TV Bandeirantes]. E já começou a aproximação com a mídia e tal. Desenvolvi uma técnica muito interessante nesses trampos aí, tá ligado?
GL/AG: Hoje em dia, como se diverte, se informa, se comunica com as pessoas, ganha dinheiro?
CDI: Basicamente, a pixação ta ligada a quase tudo na minha vida: diversão, ganhar dinheiro... Não diretamente a ganhar dinheiro, porque, hoje em dia, eu não conto com a renda dos vídeos, tá ligado? É muito pequena, só que o tema da pixação me levou a alguns determinados aspectos, como aquele roteiro ali [roteiro para filme que ele escreveu e vendeu para o publicitário e produtor Cláudio Borelli]. Aquele roteiro é o último grande projeto que eu tô envolvido e onde realmente tô ganhando dinheiro. A única coisa que eu ganhei dinheiro mesmo foi com esse projeto, que é um trabalho em que eu escrevi uma história e roteirizei um projeto, com o tema ligado à pichação. Mas, diretamente eu ainda não ganhei nada, porque não vendi nada da pixação. Teve um lance em Paris que, lógico, fui lá representar o movimento e ganhei cachê como qualquer outro artista que participa de um evento ou funcionário que trabalha, entendeu? Eu não tenho essa ambição de falar “não, a gente vai viver de pixação”, o que eu tô fazendo mesmo é tudo de coração, pelo movimento. Porque acabou me abrindo algumas portas, trouxe uma discussão interessante, eu comecei a ler algumas coisas, a pensar mais nesse lado político que o movimento tem, explorar isso. Até prá nossa vida, levar isso em diante para o resto da vida, sabe? Então, diretamente, tá tudo ligado, meio por diversão, porque eu não curto colar em balada, tá ligado? Curto colar em point, festa de pixador, entendeu? E nas minhas amizades, são todos pixadores. Então, eu curto ir às casas dos meus amigos pixadores, eu vou com a minha família prá casa de alguns amigos porque a gente é uma família. Têm as uniões, inclusive faço parte da união que chama Os Mais Fortes.

Djan Ivson Silva, o Cripta Djan, mirando a cidade do alto de um edifício em São Paulo
Foto divulgação [Arquivo Cripta Djan]
Foto divulgação [Arquivo Cripta Djan]
GL/AG: Que vocês chamam de grifes?
CDI: Isso, são as grifes. Os Mais Fortes é uma família e vai um prá casa do outro, tem aquele lance mesmo, todo ano a gente faz festa, tá ligado? E todo mundo se reúne e estamos sempre juntos. Independente da pixação, a gente criou um vínculo de amizade, de família. Tem cara que a família dele é a pixação, mano, ele não tem uma família ou às vezes não tem o prestígio e visibilidade na família, entendeu? Então, cara, basicamente toda minha fonte de lazer, de tudo, tá relacionado à pixação. Mas ganhar dinheiro diretamente é uma coisa que ainda não consegui e não pretendo também. O que veio aí foram coisas que acabaram acontecendo, foram consequências. O vídeo mesmo, muita gente acha que o Djan explora a pixação, alguns caras do movimento acham isso, mas eu só não dou esses vídeos, cara, porque ninguém bancou a tiragem, minha vontade era chegar no point e distribuir isso, tá ligado? Seria muito mais interessante. Tem um custo, tudo tem um custo prá fazer e, às vezes, você tem que recuperar pelo menos o que você investiu. Você troca figurinha e ainda sai no “preju” porque venda é uma coisa que é muito incerta também.
GL/AG: Quais são as coisas mais importantes hoje na sua vida?
CDI: Cara, em primeiro lugar minha família: minha mulher, meu filho, minha mãe e minha tia, o pessoal que mora aqui junto e que a gente corre junto e, depois disso, cara, é a pixação, entendeu? Depois da minha família, minha prioridade é a pixação. É o que move minha vida, tá ligado? É onde eu encontro minhas amizades; meus contatos vieram através disso. Hoje em dia, eu tenho contato com pessoas importantes, vários produtores, jornalistas, pessoas da arte também, é uma coisa que move minha vida, eu respiro pixação, cara. São 24 por 48 horas, não tem jeito. E agora tô até fazendo exibição, apresentando filme em faculdade e promovendo debate, coisa que, pela minha formação, eu nunca imaginaria, tá ligado? Acabou acontecendo e, hoje em dia, tenho até uma consistência para chegar e encarar uma discussão e não estar por fora, porque é complicado, eu vejo a galera do pixo, cara, eles não têm... Quando eu falo que a pixação é o que tem de mais puro e verdadeiro no momento da arte contemporânea é porque os outros artistas, qual a intenção dos caras? Os caras já nascem para o mercado. O pixador nem pretensão de ser artista ele tem, ele quer ser pixador. Ele não sabe a dimensão da importância que o trabalho dele tem, como ele é subversivo! Ele não tem apego a nada, não tem pretensão financeira; pelo contrário, o cara só se fode, sofre preconceito da família, da polícia, da sociedade, entendeu?

Djan Ivson Silva, o Cripta Djan, em ação
Foto divulgação [Arquivo Cripta Djan]
Foto divulgação [Arquivo Cripta Djan]
Gustavo Lassala e Abilio Guerra: Como você entrou no mundo da pixação?
Cripta Djan Ivson: A minha iniciação mesmo, prá valer, foi quando eu saí no rolê com um parceirinho meu que era amigo de infância e de fazer tudo, o Ricardinho. A gente já colava com a galera da rua, a galera mais velha, que já pixava em Barueri, no bairro dos Camargos. O Ricardinho começou a pixar, pegava as tintas do pai dele e pixava tudo em volta da casa dele. Um dia, ele falou: “vâmo”? A gente era parceiro de fazer tudo e eu nem gostava da pixação para falar a verdade, não tinha vontade mesmo de fazer. Meu negócio era andar de patins, lutar capoeira e jogar bola. E aí, eu saí com o Ricardinho nesse dia, a gente começou a pixar e eu comecei a curtir aquele negócio. Ele lançava Os Assassinos e eu entrei para a gangue e esse foi meu primeiro rolê, cara. A gente começou a pixar as vielas ali perto de casa, mas eu demorei muito – estava pixando um andaime perto de casa – e minha tia me procurou; eu fiquei escondido, então já foi uma adrenalina; eu tinha doze anos. Nós éramos uns moleques, sempre em busca de aventura. Nesse dia, nós acabamos com as tintas ali perto do bairro, e falamos: “vamos lá prá estação agora, vamos lá prá longe”. Aí fomos prá longe de casa pixar e um cara nos pegou, deu um banho de tinta em nós, bateu. No meu primeiro rolê, cheguei em casa todo pintado dos pés a cabeça, aquilo me marcou.
GL/AG: Esse cara era dono da propriedade?
CDI: Olha só, que história louca, de filme, de novela. A gente estava pixando uma viela, não era nem o muro dele, era da casa lá de cima da ponta. Ele viu da janela, desceu correndo e a gente correu a rua inteira, mas a gente era moleque e não teve fôlego para correr mais que o cara, ele nos pegou lá na esquina, trouxe arrastando, mandou tirar as camisas e esfregar na parede, e nós começamos a esfregar. E aquela sensação de frustração, desespero... O cara começou a agredir meu parceiro, porque provavelmente ele era palmeirense e o moleque estava com a camisa da Gaviões [Gaviões da Fiel, torcida organizada do Corinthians Futebol Clube]. Eu fiquei assustado com aquele “baguio” porque esse cara foi muito covarde. Hoje em dia, eu tenho filho e tenho uma dimensão de quanto aquele cara foi covarde. A gente tinha doze anos... O dono da casa saiu e isso foi a nossa salvação porque o cara era mais tranquilo, ficou assustado, viu a gente e disse: “vou levar esse meninos em casa”, e o malandrão foi junto. O dono chegou na porta de sua casa, chamou o pessoal e o cara começou a explicar e nessas, foi chamar o pai do outro moleque. Quando o pai do moleque chegou, não era ele compadre do dono da casa? Olha que coincidência! Só que o dono da casa teve uma postura e sobrou pro maluco. De repente, estava um bando de pixadores lá na rua, viu a gente daquele jeito, virou uma confusão... Queriam pegar o cara, que entrou dentro de um carro e se trancou. Só não quebraram o carro porque este era do dono da casa, que foi gente boa. Dalí, já foi um “baguio” que me marcou e me revoltou, “já rodei”. Mas, cara, eu falei prá minha família que não ia mais pixar. Só que eu não consegui, não conseguia parar de ter vínculo com o negócio, acho que foi uma praga... Até que chegou um dia que eu falei: “eu sou pixador mesmo e já era”. Assumi mesmo, cansei de mentir; eu nunca gostei muito de mentir.
GL/AG: Você estava com quantos anos?
CDI: Então, doze anos. Minha tia começou a falar “o Djan está chegando com tinta” e eu escondia a tinta na garagem e não tinha como negar, tá ligado? Eu pixava Os Assassinos. Eu saí da gangue porque eu e o Ricardinho fomos pixar em outro lugar e ele me deixou falando sozinho na hora da fuga, tá ligado? Era prá ele me esperar e não me esperou, eu fiquei chateado com ele e aí acabei entrando para Os Garotos, que era a gangue dos caras da rua, com os quais eu já andava. Fiquei um tempo n’Os Garotos e depois entrei pro Cripta em 1997.
GL/AG: O que te passa pela cabeça quando vai pixar?
CDI: Cara, é uma sensação ali de... É um prazer que a gente tem, que é... Sei lá, quando a gente está pixando... É uma pergunta interessante porque, na minha mente, é um prazer, uma satisfação muito grande, estar fazendo aquilo ali. Tem o lance do medo também, da repressão... Eu mesmo nunca consigo fazer um pixo totalmente tranquilo, tô sempre agitado, nunca tô de bobeira, tá ligado? Às vezes, o pessoal até fala “você é muito acelerado”, mas não, é um risco, você está com a lata de tinta... Prá você assinar um processo na delegacia é muito fácil, às vezes, não precisa nem estar pixando... Quando eu tô pixando, me sinto num momento de conflito com tudo e todos. Ali é um momento meu, que eu estou desafiando todo mundo, sabe? Porque quase ninguém aceita o negócio e nem é obrigado a aceitar também. E eu tenho que arcar com as consequências do que eu tô fazendo.
GL/AG: Você se lembra da primeira entrevista que cedeu para um periódico de grande circulação?
CDI: Foi prá Band [TV Bandeirantes]. Eu tenho até uma foto. Foi a primeira vez e eu já estava numa fase boa do rolê e nesse dia eu representei o pixador que não fazia parte do projeto. A matéria foi assim: os assessores, secretários, falaram “é o seguinte, nós vamos falar sobre o projeto aqui e tal, mas vai ter que ter um que vai ter que falar que não aderiu ao projeto”. Os caras olharam assim e... “o Djan!” Aí, dei entrevista falando que não queria entrar para o projeto e tal; mas foi legal, minha primeira entrevista como pichador e todo mundo viu, tá ligado?
GL/AG: Mas não era um embuste, porque na verdade você ia para o projeto?
CDI: Eu fazia parte do projeto, era armação nossa. Assim, tem que ter um lado bom e um lado ruim da história. E comecei a dar uma entrevista em Barueri, dei entrevista para o Fantástico na época, quando era o Caco Barcelos. Não chegou a sair por que... Você sabe como é, os caras entrevistam um monte de coisa e não usam tudo. Mas aí eu já comecei a pegar esse contato com a mídia porque eu fiquei muitos anos em Barueri, a gente deu muita entrevista no decorrer desses anos, desenvolveu um trabalho bonito na cidade e era pixador. A gente tem um conceito lá na cidade e conseguiu até inverter nossa visão, tinha até um respeito, até da guarda municipal porque a gente até “aloprava” onde a gente estava trampando. Era uma festa, tá ligado? A gente pegava um viaduto para pintar, virava um point, ficava meses lá trampando e era uma zona. A gente parecia que mandava na cidade, tá ligado?
GL/AG: Como você escolhe o prédio ou monumento que você vai pixar? Você escolhe com antecedência?
CDI: Tem as duas formas. Às vezes, você está no rolê e aquilo surge – sabe? –, com a necessidade do rolê. A gente tem essa facilidade de tanto tá articulando o local antes, como no momento também. Tem coisas maravilhosas que acabam surgindo no rolê e que a gente nem imaginava pegar e tem coisas que a gente estuda mesmo e tem como alvo, meta, tá ligado?
GL/AG: Existe algum tabu, algum tipo de edifício ou monumento que não pode ser pixado?
CDI: Não. Não há restrição alguma para pixação, cara. Isso é uma coisa da pixação, não há... Você vê que até o Cristo já foi pixado, a cara do Cristo.

Djan Ivson Silva, o Cripta Djan, na praia
Foto divulgação [Arquivo Cripta Djan]
Foto divulgação [Arquivo Cripta Djan]

Matéria sobre Cripta Djan Ivson na capa do caderno Ilustrada, Folha de São Paulo
Foto divulgação [FSP, 15/03/2012, p. E1]
Foto divulgação [FSP, 15/03/2012, p. E1]
Gustavo Lassala e Abilio Guerra: Você sabe como surgiu esse movimento em São Paulo? O que você acha que motivou o início da pixação?
Cripta Djan Ivson: Cara, esse movimento da pixação com “x” começou mesmo com os punks, tá ligado? A gente analisa os primeiros pixadores: eles eram punks. Final dos anos de 1980, cara, a partir de 1986, tá ligado? Só que no final dos anos 80 começou a ter festa, point e as uniões, entendeu? Isso começou a se caracterizar: Os Melhores, Os Piores, Os Mais Antigos, Os Mais Fortes, Os Mais Imundos, entendeu? Essas uniões começaram a se consolidar e se você vê os convites da época, os caras, com desenho punk, os temas, eram todos punks, os caras com a guitarra na mão, com moicano, entendeu? A galera tinha essa lance de protestar, esse cunho político, mais adotado pelo movimento punk. Não era aquele político da época da ditadura, mas o punk tinha uma linha de anarquia e tal, sempre protestando e questionando. A raiz do pixo é o movimento punk, entendeu?
GL/AG: Você acha que eles tinham contato com revista e livro do movimento que acontecia em Nova York, com o movimento do grafite, que tem muita semelhança com a pixação? Existe alguma ligação?
CDI: Cara, isso que é legal, a galera não tinha influência nenhuma, pixador nunca foi influenciado pelo grafite. Nunca! Pelo contrário, quem sempre influenciou o grafite foram os pixadores. Antigamente, pixador nem gostava de grafiteiro.
GL/AG: E você acredita que o design das letras do pixo está ligado ao logotipo das bandas de punk da época?
CDI: Totalmente. Porque os caras pixavam... O Lixomania é uma banda de punk, os caras pixavam “Sex Pistols”. Tinha o Birajá Punk, tinha... Bom, você pode reparar nas letras, eles se apropriavam mesmo, eles faziam os nomes... Era muito ligado com isso, entendeu? Tinha muito cara que pixava nome de banda, tinha o Dead Kenyds, tá ligado? Deve ter tido “Ramones”; tem uns caras que não chegaram a se destacar, mas, às vezes, a gente acha uma assinatura, uma folha de alguém, uma foto.
GL/AG: Ainda no design de letras, o Cripta, quando você entrou, já tinha essa assinatura?
CDI: A raiz dela foi criada pelo CBR. O CBR era um cara que tinha facilidade para inventar letra, tá ligado?

Pixo com a assinatura da gangue Cripta, imagem capturada a partir de um quadro na sala da casa de Djan Ivson Silva
Foto Gustavo Lassala
Foto Gustavo Lassala
GL/AG: Ela se diferencia da letra padrão do pixo?
CDI: Muito, muito! Sabe o que aconteceu, o CBR em 1998 foi pro Nordeste, não sei que Estado exatamente, não me lembro. A gente fez uma viagem, eu fui prá Bahia... Ele voltou com influência dessas letras puxadas, essas perninhas, e falou que foi influência de lá. Eu andei reparando por aí e tem um lance assim nas pixações de outros estados.
GL/AG: E você acha que isso também foi um fator de destaque em relação às outras gangues?
CDI: Cara, todo pixador tem que buscar uma diferenciação, mas o CBR conseguiu inventar uma letra que realmente se diferenciou e que eu aperfeiçoei com muito rolê. Basicamente, ela é a mesma, mas os traços começaram a ficar mais arrojados. A gente sempre teve uma letra mais simples e uma mais complexa, uma para fazer mais rápido e outra, com mais trabalho e tal.
GL/AG: E tem relação com o espaço para desenhar a letra?
CDI: Tem muito! Às vezes, a gente está com uma galera grande e essas letras se destacam muito, por mais que eu esprema elas...
GL/AG: E se deixar as últimas letras apertada ou encavalada, “queima o filme”?
CDI: Existe vaidade na pixação, existe pixo bonito, pixo feio... Eu era um cara que quando comecei a me destacar, era porque eu subia numa janela e não deixava espaço, eu fazia de ponta a ponta... Eu sempre gostei de manter a tradição no pixo: jogando primeiro a união, depois a gangue, assinando, colocando data, zona, entendeu? E é bem típico paulista; nos outros estados não tem isso, é só aqui em São Paulo. Sempre gostei mesmo de manter a tradição, tá ligado? Porque tem muita molecada que, às vezes, acaba dispersando. Eu não, sempre fui um pixador à moda antiga e por isso que a galera da velha sempre prestou atenção no meu rolê, por causa dessas coisas. Eu ergui união que os caras viam na época deles. Os caras falavam “esse moleque tá representando Os Mais Fortes”.

Edifício pichado, São Paulo
Foto Jemandanderes [Wikimedia Commons]
Foto Jemandanderes [Wikimedia Commons]
GL/AG: O que motiva os pixadores a continuarem hoje em dia?
CDI: A motivação dos caras é a disputa. É essa busca existencial, sabe?
GL/AG: Mas disputa com quem? Com o poder público, entre os pixadores?
CDI: Basicamente, cara, eu defino como uma busca existencial. Sabe, porque a vida do cara muda, o cara passa a ter Ibope, muda tudo, parece que você era pobre e ficou rico, entendeu? E você não precisa ter dinheiro para isso, cara, e aí tem o cara que é “mó” tranqueira, mas aí é pixador, mano e tem fã. O cara anda pela cidade inteira, dormindo na casa de um e de outro, pixando com um e com outro, sério...
GL/AG: E é bem tratado?
CDI: É, tipo os caras pulando, pega no colo... Tem cara que “banca a lata”, mesmo. Tem cara que prá desenvolver uma caminhada então, essa busca existencial, o cara não era porra nenhuma, era um fudido... Na pixação ele encontra uma forma de ser reconhecido sem a questão do dinheiro, né? Sem a questão econômica envolvida.
GL/AG: Existem personagens míticos antigos e recentes cultuados pelos pixadores?
CDI: Tem muito, lógico. O Di, o Tchentcho, o Xuim. O Tchencho e o Xuim foram os primeiros caras a pixar no alto e a se destacar, serem grandes referências nisso. O Di já pixava na época dos caras, mas ele começou a pegar prédio, vendo os caras fazer prédio e aí os caras pararam e ele deu continuidade, acabou superando todo mundo.
GL/AG: Esses foram os precursores em pixar prédios?
CDI: Eu não posso afirmar se foram os primeiros, primeiríssimos, mas que eles foram os primeiros a se destacar. Foram as primeiras matérias de jornal a sair: “prédios viram alvo de pichadores”. Aquele prédio na Faria Lima, de esquina, tem uma escada assim: “Tchentcho e Krellos catô”, tá ligado?
GL/AG: O Di morreu, não é? E o Tchentcho e o Xuim?
CDI: O Xuim até que “cola” com a gente, às vezes, cara. O Tchentcho está na igreja e é aquele cara muito radical com o lance de igreja. O Xuim deu uma pixadinha de leve, mas o Xuim virou empresário. Hoje em dia ele trabalha com negócio de carro e até o nome da empresa dele é Xuim; é um cara bem sucedido.

Edifício pichado, São Paulo
Foto Edgar Fabiano [Wikimedia Commons]
Foto Edgar Fabiano [Wikimedia Commons]
GL/AG: Como se entra num grupo de pixadores? Tem algum ritual de iniciação?
CDI: No Cripta, rolam os convites. Eu tenho a percepção de chamar os moleques e de transformar eles em monstros. Eu consigo fazer isso com a minha influência de trazer eles pro Cripta e falar “ó, eu não só chamo, eu incentivo, eu mostro, eu dou ideia, eu converso, explico”. Minha experiência: eu tive minha independência na pixação, ninguém me apadrinhou, tá ligado? Então eu tento passar isso pros caras. A gente era tirado de bafo, colava nos points, se sentia humilhado e usava aquele ódio para reverter isso no rolê, entendeu? E falava “um dia eu vou colar aqui e vou ser respeitado”, tá ligado? Então, eu explico isso pros caras e eles sabem a responsabilidade de entrar no Cripta. Às vezes, o moleque entra no Cripta e se transforma, então os caras falam “Porra, Djan! Como você tem sorte assim?”. Todos os moleques que eu pus no Cripta representaram, eles não chegaram ao meu nível, mas alguns chegaram até perto, tá ligado? Mas os moleques todos fizeram rolê digno, têm sua expressão no Cripta, se fala assim “ó, esse é fulano, esse é beltrano...”. Todo mundo conhece a assinatura dos moleques e é muito difícil, cara, isso acontecer. Teve alguns que não deram certo.
GL/AG: Mas como que é, “os caras” se aproximam, colam no point? Conhecem você da rua?
CDI: Olha, a gente tem uma tradição de colocar quem tá mais próximo. Às vezes, a molecada do bairro que já pixa, já tem um vínculo. Minha casa, cara, nesses anos de pixação, sempre foi muito visitada por pixadores, por molecada. Vinham ver foto, vídeo... Esses moleques, às vezes, têm uma presença muito constante na minha vida e quando vejo, esses moleques já estão fazendo parte do meu convívio, só de colar em casa, de me ver no point, de me acompanhar ali... Às vezes eles colam com um moleque que já é mais envolvido comigo e vão criando vínculo e quando eu vejo, começo a ver a importância daquele moleque, começo a ver o rolê dele na rua e a gente dá o incentivo na hora certa. Eu consigo ter essa facilidade de fazer os caras, incentivar. Até os manos da zona leste lá falaram “porra, Djan, você aponta e diz ‘você vai ser o próximo zica da pixação’”. Os caras têm até essa visão, sabe? De fora, eles não conseguem achar, recrutar os moleques com facilidade.
GL/AG: O que seria “zica”?
CDI: Zica é um cara corajoso, que é embaçado mesmo, que é um cara linha de frente, que vai encarar qualquer coisa, sabe? Aquele cara que é encardido mesmo, tá ligado? Essa expressão é muito usada. Antigamente zica era mais usado prá coisa que deu errado. Hoje em dia, ao contrário, zica, se torna até uma qualidade. Se vê pelos pixos dos caras “Os Mais Imundos”, “Os Porra Nenhuma”, “Sujos”...
GL/AG: Mas e se o cara quer entrar no Cripta, você dá o aval, conversa com os outros integrantes?
CDI: Hoje em dia eu tenho condição de estar na liderança mesmo, na linha de frente do negócio, sabe? Porque foi uma coisa muito espontânea, uma liderança que acabou se dando com o tempo. Eu sempre respeitei o CBR, que foi o líder, o cara que inventou o Cripta, meu parceiro. A gente andou muito tempo junto, pixamos bastante, tanto é que teve uma época que saí d’Os Garotos porque eu realmente queria ser do Cripta e o CBR já tinha um conceito na quebrada e tal e a gente era parceiro. Todo mundo d’Os Garotos parou e só ficava eu e o CBR no rolê. Gostava do Cripta prá caramba e pedi até prá entrar porque ele ficava com vergonha de me chamar e a mina dele me falou: “ele é tímido e está com vergonha de te chamar”. Sabe como ele é... Aí, entrei no Cripta. Logo que eu entrei, uma semana depois, uma gangue, a mais famosa da cidade, que era a Autopsia, me chamou. O cara mandou uma carta da cadeia, um monstrão que foi preso, mandando o outro me por na gangue. Era o Dé. Esses caras eram nossas referências máximas de pixação em Barueri e aí foi difícil prá mim negar esse convite, velho. Me chamaram prá entrar no Autopsia e eu li a carta. Eu fiquei divido, mas eu tinha aquele vínculo de amizade com o CBR e eu não deixei o Cripta. Muita gente não acreditou, falou “porra, mano, você é louco! Deixou de entrar no Autopsia. Foi bom porque o Autopsia já tinha esses caras como referência, né? Eu ia conseguir me destacar, lógico... Mas no Cripta foi legal que foi uma parada que nós erguemos do zero. Era um pixo de vila.
GL/AG: O que é se destacar? Pixar alto? Maior quantidade de vezes?
CDI: Você conseguir ter nome, cara, é conseguir ter nome na pixação, mano, reconhecido por todo pixador. A grande maioria vai, flagra seu pixo, quando o cara te “trombar” assim: “você que é o Cripta? Você chegou na minha quebrada, pixou em tal lugar”. Isso é ser reconhecido. Chegar em vários lugares e a galera conhecer seu rolê, entendeu? Tem os caras que se empenham mais no centro; tem outros caras que não tem nada no centro, mas “explode” a cidade toda; e tem várias formas, várias outras modalidades do cara se destacar na pixação, entendeu? Tem a galera mais do “baixo”, tem cara que não faz nem pé nas costas, tem uns caras que já gostam de sair metendo escada por aí, outros mais de vara, de extensor, tem muito tipo de pixador.
GL/AG: O que você acha da forma que o Tumulus faz, de pixar em lugares que a mídia vai fazer cobertura, só para aparecer na TV?
CDI: O Tumulus ficou até mal visto na pixação por causa disso. Não o Tumulus, a gangue, mas o Tatei. Porque não tem rolê na rua, apesar de ser um cara antigo na pixação, de “milianos” [“mil anos", “há tempos”], que nunca teve rolê. Mas o Tumulus sempre foi uma gangue de nome porque tem o Marcal, outros caras e sempre entrou uma molecada boa que representava o Tumulus, entendeu? Pode se dizer que o Tatei é tipo o cara que cuida do marketing da gangue, mas é também uma forma de se destacar, velho, de certa forma tem gente que admira também o cara, né? Ele conseguiu ser competente também.
GL/AG: Na sua grife é você quem dá a última palavra?
CDI: Também... Eu me tornei o líder dos Os Mais Fortes, que é uma união antiga, de muita tradição, tem 21 anos, inclusive. Eu entrei em 1999 n’Os Mais Fortes, eu sou líder de duas grifes – O Círculo Vicioso e Os Mais Fortes – e essa liderança se deu por uma coisa assim, espontânea, sabe? O “Círculo” eu peguei morto, a gente pegou morto em 1998. É uma união de 1995, a gente trouxe para zona oeste e começou do zero, já viemos como líder para cá e eu entrei n’Os Mais Fortes. O primeiro grande líder foi o Alex, “Tita, do Elementos”; esse cara pixou com nós até dias atrás e a gente tá ligado até hoje. Hoje em dia ele tá na igreja, tá de boa, mas mesmo assim ele tem vínculo com a gente. A gente se liga, se fala, entendeu? E aí, eu entrei porque eu era realmente um moleque que “puxava o bonde”. Eu consegui levar essas grifes a uma visibilidade que elas nunca tiveram, por isso que eu me tornei o líder, entendeu? Eu já tinha esse lance, tudo eu estava à frente, era uma coisa muito espontânea, sabe? Quando eu via, era a própria galera que falava “não, mano, é o Djan!”. A própria galera me promovia a líder, entendeu?
GL/AG: Uma vez dentro de um grupo, um pixador pode mudar para outro?
CDI: Às vezes o cara é “espirrado”, às vezes o cara sai, normal...
GL/AG: E se for como na política, sai de um partido e vai para outro?
CDI: Aí fica uma mágoa, dependendo de qual for a rincha, se tá entrando numa grife que tinha treta com a outra, tá ligado? É uma questão muito política. Às vezes, o cara sai de um prá virar inimigo do outro.
GL/AG: Você se vê pixando fora do Cripta?
CDI: Não, nunca. Cripta é minha família, cara. Depois da minha família, aqui em casa, o Cripta é minha família mesmo, tipo parente, velho. Se o cara entrar pro Cripta, ele vai ter um vínculo diferente prá sempre. Da época do CBR, tinha uns caras que até hoje a gente vê, se fala... Estes caras não pixam há muitos anos, mas vem em festa, “cola” junto, é tipo um parente, não é apenas um amigo. O cara ser do Cripta ou d’Os Mais Fortes é diferente. Ele já passa a entrar prá família, entendeu? Literalmente entra prá família, entendeu?

Djan Ivson Silva segura jornal em que ele e Rafael “Pixobomb” são destaques da reportagem sobre convite para a Bienal de Artes de Berlim em 2012
Foto Gustavo Lassala [O Estado de S. Paulo]
Foto Gustavo Lassala [O Estado de S. Paulo]
4. O mundo do pixo

Djan Ivson Silva com a máquina que ele usa para capturar as imagens dos filmes que produz
Foto Gustavo Lassala
Foto Gustavo Lassala
Gustavo Lassala e Abilio Guerra: Qual o seu papel no movimento da pixação em São Paulo hoje?
Cripta Djan Ivson: Hoje em dia, além de tá fazendo essa documentação, que eu vejo como importante, eu penso em deixar pelo menos um legado, tá ligado? Deixar um caminho a ser seguido, entendeu? Só apontar um caminho prá galera, tá ligado? Falar “olha, eu acho que a gente tem que direcionar mais o pixo como instrumento de revolução mesmo”, sabe? É legal pixar, ter seu Ibope, mas a gente também não pode se afastar totalmente desse questionamento político, sabe? Eu acho que a gente tem que usar porque o exemplo disso foram os ataques e tudo que veio gerando para nós. Quando o Rafael chegou prá mim em 2008 e falou que queria sacrificar o diploma dele, eu não consegui enxergar o que é que ele estava propondo. Parecia um papo de louco, mas ele já tinha isso idealizado, tinha a visão e eu não conseguia ver... O preconceito é tão grande da sociedade, a falta de informação também é tão grande, porque a galera é tão carente.
GL/AG: Como é a reação da sociedade ao pixo e aos pixadores? Quem gosta e quem não gosta?
CDI: Ninguém gosta de pixação, nem bandido gosta.
GL/AG: E sua família?
CDI: Meu pessoal é tranquilo, eu tive sorte porque o meu pessoal tem uma cabeça boa. Os caras que são pixadores, a maioria, tem a família com a cabeça boa, mas tem cara que a família nem pode saber que ele pixa. Eu tive uma família que tem a cabeça aberta. Melhor... Por isso que eu até tenho essa facilidade prá dar entrevista e falar disso publicamente, isso já não é mais um problema, entendeu?
GL/AG: Em algumas entrevistas, você fala que é ex-pixador?
CDI: Na real, é o que acontece. Eu não chego a falar que sou ex-pixador, pode prestar atenção. Os caras me creditam como ex-pixador porque quando eu dava essas entrevistas eu estava em atividade, aí os caras perguntam “você tá pixando?” e eu falo “no momento, não tô pixando”. Minha atividade, que era uma coisa monstruosa, parou em 2004, tá ligado? Eu me considero, desde então, um cara “aposentado” no pixo. Eu nunca mais voltei a ter aquela dedicação que eu tinha, entendeu? Faço um rolê ou outro, mas a galera sabe que eu não voltei. A galera sabe... Mas tem cara que acha que eu estou na ativa, por tudo que acontece aí e tal.
GL/AG: E o Lin, que estava preso e voltou à ativa?
CDI: É, voltou e fez bastante. Você vê e fala “o cara voltou e tá fazendo tudo que fazia na antiga e mais um pouco”. Eu explodia, na minha época! Explodia, escalava tudo que era prédio, catava umas janelas, fazia muita quebrada também. E eu chegava “de três”, em pé, nas quebradas...
GL/AG: O que te motivou a começar a produzir documentários sobre a pixação?
CDI: Era a falta de material direcionado prá nós. A gente tinha que se contentar com recortes de jornais ou uma foto numa revista de grafite. A gente chegou a ter o álbum de figurinha “Só Pixo”, mas os caras que faziam o baguio colocavam muita foto deles e aí a galera desanimou, né? Mas parece que eles tiveram um boicote na época, não sei qual que foi, mas ele tiveram que parar. Aí veio o Pixadores em Ação, o primeiro vídeo direcionado a pixadores. Antes disso a gente pegava rabeira em algum vídeo de grafite, noSão Paulo Show, no Invasão, n’Os Mais Obscuros. Os caras do grafite sempre tiveram uma condição melhor, sempre foi aquela galerinha classe um pouco média alta, mais playboy. Pra você ver, o caras já tinham acesso a esses recursos, nós não. Os caras já tinham vídeo; a gente, se tivesse vídeo do começo dos anos 1990, poxa!... A pixação era magnífica. E tem, assim, o vídeo Bombardeio Obscuro, eles chegaram a pegar bastante coisa de pixo e é mágico. Esses materiais são ótimos, é muito importante, o Pixadores em Açãofoi feito por pessoas que não eram pixadores, eram os caras de uma balada, do “Tio Sam”, e eles não deram continuidade, então, ficou aquele lance, de “a gente não tem mais nada!” Depois de 2003, conheci o pessoal do 100 comédia – que não era projeto meu – e do Escrita Urbana [série de vídeos]. Já tinham título, já estavam em andamento. Nas filmagens, eram os caras da Pompéia que gravavam os vídeos 100 comédia. Outro moleque do Bom Retiro gravava o Escrita Urbana; o cara era pixador e o “Vadios” acabou abandonando o projeto 100 comédia na minha mão. Eu tinha participado do 100 comédia e corri atrás... Do nada, um dia, estava dando entrevista prá revista Graffiti, para o Alexandre de Maio, que é um cara do Rap. Foi ele quem me entrevistou. O cara era muito gente boa e depois da entrevista – quem ia me entrevistar era o Binho e eu já tinha perguntado pra ele como fazer um vídeo, mas o Binho meio com má vontade e tal não respondeu... – bem, o Alexandre não, já falou, “porque que você não faz um vídeo?”. Eu falei, “material a gente tem, mas não tem recurso prá editar” e ele, “eu me comprometo!”. O cara se comprometeu e eu retomei o projeto. Fui até o fim. Foi difícil fazer o baguio de favor, tive que ser chato, tive que ficar em cima e aí, conheci o T.H.O. no estúdio dos caras. Na real, nem foi o Alexandre que deu a força, mas acabou que passou a bola para o Roney, que trabalhava com vídeo e é o cara das batalhas de “breique”, um cara antigo do hip hop, que abriu o estúdio dele; o T.H.O. era o editor dele. E aí, “vocês editam aqui e eu lanço”, só que quando acabou a edição, ele não tinha dinheiro para lançar aí nós mesmos lançamos. O T.H.O. é editor, mas não tinha dedicação ao trabalho. Em 100 comédia e Escrita Urbana 2 eu filmei o material sozinho. O T.H.O. estava me dando muito problema pois a função dele era editar e a minha, filmar, e ele não estava fazendo a função dele. Tive que contratar um editor. Foi aí que eu comecei a tocar tudo sozinho (1).
GL/AG: Você tem problemas com a justiça por conta da pixação? Sofreu processos, passou por julgamentos?
CDI: Meu primeiro processo foi na festa do Cripta, em 1999, por incrível que pareça. Porque, às vezes, a gente é abordado, chega a ser levado para a delegacia e não chega a ter uma ocorrência. Para a ocorrência acontecer, a vítima tem que estar presente, mas, hoje em dia, os caras estão tão filhos da puta que eles fazem um termo que você se compromete logo com o Ministério Público. Se o cara te pegar com tinta na rua e quiser te fuder, ele faz isso, entendeu? Mas o meu primeiro processo foi assim, fiz a festa do Cripta na minha casa, a vizinhança me processou em ação conjunta. Foi meu primeiro problema com pixação. Depois, realmente fui pego em cima de um estabelecimentoe a polícia cercou. Na realidade, o primeiro processo foi esse de 1998 e a primeira vez que eu caí em delegacia foi em 1997, que deu aquela merda lá, que o cara fez a gente se agredir, que o prefeito foi e comprou a bronca. Em 1998 eu rodei fazendo um “pico” numa padaria. Os caras cercaram e nos pegaram lá em cima. Eu tive audiência, reparamos o dano, pagamos a tinta prá família... Na época, eu era “de menor” e a responsabilidade era da família. Depois teve o da festa, a juíza já ficou puta comigo e eu era moleque, não estava nem aí prá juíza, batia de frente com ela, ela ficava louca e falava “e aí, mãe, e esse moleque?” Eu, nem aí prá ninguém, molecão, quinze anos. Depois, 1999 foi o ano que eu mais tive processo, que eu “tava que tava” dedicado e comecei a ir pro centro. 1999 foi o ano em que eu falei para mim: “eu tenho que ser alguém na pixação”. Porque em 1998 eu já comecei a iniciação de ir prá fora, tá ligado? Eu assinei um processo no centro, assinei dois processos no centro. Na mesma semana, em 1999, a juíza ficou puta comigo, a juíza lá do centro. Aí já era da comarca de São Paulo, porque tem o município, se você “roda” no município, você vai prestar conta pro município, se você “roda” na grande São Paulo, você vai prestar conta no fórum de lá. Eu tive esses dois processos e nenhum dos dois deu em porra nenhuma, porque não teve que pagar reparação de dano. Um foi pixando uma porta de aço e o outro era um pico de um prédio que tinha acabado de ser reformado e queriam que a gente pagasse setecentos reais. Na época, era um absurdo isso, não tinha como, minha mãe foi lá e falou que não tinha condições e ficou por isso mesmo. Também teve um processo, em 2000, quando eu “rodei” fazendo uma porta de aço em Carapicuíba, que gerou um certo comprometimento. Coisa que a gente nem imagina, às vezes, uma portinha, um pixinho bobo, por isso que, hoje em dia, eu não gosto de dar bobeira, que prá assinar um processo é foda. Eu, quando saio prá pixar, é coisa séria, já saio concentrado de casa, já saio determinado com a missão, é planejado, prá mim, rolê é missão.
GL/AG: Missão é palavra militar, não é? Você percebe isso? Vocês usam tática de guerrilha, fica um vigiando, etc?
CDI: Totalmente! Depende muito do que a gente vai fazer. O que precisa mais de contenção é quando está pixando no baixo, quando a gente está fazendo um pé nas costas, pixando aqui, chão. Aí, sempre é bom ter gente olhando pros dois lados porque a tendência de “rodar” pixando em baixo é muito maior. Se subiu, você já está ganhando tudo, ninguém anda olhando prá cima, só pixador, tá ligado? “De maior”, comecei a ter processo em 2003, foi meu primeiro. Tive um pixando um murinho, tive um escalando um prédio na Avenida Rio Branco, que os caras me pegaram no meio da escalada, falaram que eu era o homem-aranha; esse aí foi engraçado! Também tive um problema sério por causa de briga de pixação, que também acabei sendo nem absolvido; o caso foi encerrado por falta de provas e era tentativa de homicídio a acusação. Isso me complicou muito porque essa confusão aconteceu em 2002, fui acusado sem provas, mas eu fui acusado, pela vítima. Era uma “treta”, era uma guerra que aconteceu nos points e foi gerada por rivalidade mesmo, nem foi atropelo de pixo, foi por quem superava mais o outro, quem subia mais alto e, em 2004, quando eu assinei esse processo, a delegada achou o inquérito disso, aí foi que me deu uma desanimada, eu já estava pai, meu moleque já tinha dois anos porque eu casei com dezoito. Então, já começou a pesar prá mim, sabe? Muita noite de “delega” e tal, mesmo assim eu nunca consegui me afastar, mas eu parei de me dedicar daquela forma exagerada, que era uma forma pesada.
GL/AG: Foram quantos processos?
CDI: “De menor”, foram quatro, Barueri foram quatro; no centro, dois; em Carapicuíba, um... Bem, “de menor”, foram cinco! “De maior”, teve 2003, 2004 e 2006. Oito processos, cara.
GL/AG: Chegou a passar noite em delegacia?
CDI: Cheguei... Fiquei muito em “corró”. Fora os processos, fui muitas vezes prá delegacia. No centro eu conheci todas as delegacias, passei em todos os “corrós”, já limpei muito lixo de preso, bituca de cigarro, tá ligado?
GL/AG: Ficou no máximo quanto tempo?
CDI: Uma noite, o máximo de tempo ainda quando eu era “de menor”. E era uma miséria, então eu já aprendi uma coisa: quando era “de menor”, caiu de “delega”, dá o telefone da mãe! A melhor coisa é sua mãe te retirar porque aí a gente vai prá uma triagem, né? Tem que ter um pequeno julgamento, isso aí foi um transtorno do “caraio”. Eu fiquei assustado quando caí dentro de um pavilhão todo fechado e tive que vestir uma roupinha, andar na linha, “Sim, senhor! Não, senhor!”. Foi pesado.
GL/AG: Como é na delegacia, você chega lá no “corró” e os caras perguntam o que você fez?
CDI: No “corró” a gente “tromba” uns caras que estão fudidos, que quando nós falamos que é por pixar, os caras: “ah, tá suave...” Os caras ficam com inveja da gente, tá ligado? “Queria também ser pixador nessa hora aqui e ia ser liberado com vocês!”
GL/AG: Pixação tem alguma coisa a ver com arte?
CDI: Eu acho que tem. A arte é uma das coisas que também fazem parte da pixação. Por várias questões, uma questão é a da tipografia. A tipografia faz parte das artes plásticas, não é? A performance também faz parte da arte. E a performance do pixador é a performance da vida, não é? E também acho que é subversão. A pixação é um objeto artístico, não é só arte. Uma das coisas que compõem a pixação é a arte, mas não é basicamente só isso; eu acho que a pichação merece sim reconhecimento da instituição de arte, não que isso vá colocar a gente num cubo branco ou que a gente queira espaço autorizado na cidade ou projetos sociais. A gente não quer nada disso; a gente quer um reconhecimento pelo que a gente é na essência, entendeu? Um reconhecimento existencial. Só isso. Essa que foi a nossa busca.
GL/AG: O que você entende por tipografia?
CDI: Cara, eu vejo a pixação com uma riqueza muito grande, tipográfica. Ela reinventou a escrita! Cada pixador tem que desenvolver uma letra prá poder estar se destacando, cada pixador tem um alfabeto único e você vê aí que a gente tem origem numa apropriação do alfabeto rúnico que é uma escrita, uma tipografia de muito tempo atrás, não é? Eu acho que a riqueza estética da pixação, tipográfica, é muito interessante.
GL/AG: Mas como essa ligação com o alfabeto rúnico, você acha que os pixadores viam livros, estudavam isso?
CDI: Não, porque os caras do rock se apropriaram disso no logotipo das bandas, tá no inconsciente e a galera do punk começou a usar isso sem saber, tá ligado?
GL/AG: Mas a palavra tipografia para você o que é?
CDI: Pra mim é letra.
GL/AG: Como você vê a presença da mulher no mundo do pixo?
CDI: A gente sente por ter poucas minas, mas entende porque é um movimento muito viril. É arriscado, exige uma força física... Lógico que tem minas que conseguem se destacar na pixação, mas nunca como um pixador, tá ligado? Um homem tem mais disposição para subir nos negócios, escalar as paradas, as minas que pixam usam mais aquelas táticas de enganar os porteiros, subverter a segurança, entendeu? As minas conseguem se destacar dessa forma, pixando prédio e tal. Poucas minas escalaram, fazem pé nas costas e se destacaram por esse tipo de rolê. As minas tem mais rolê de leve, rolê de chão, ou pixam muito com um cara que é foda. Às vezes, o namorado da mina acaba pixando prá ela, tem essa também. Tem poucas minas que realmente se destacaram, tá ligado?
GL/AG: E tem preconceito?
CDI: Que nada, os caras preferem levar as minas, porque às vezes é mais “picadilha” você dar uma disfarçada, mas sei lá, depende da mina. Também tem cara que não vai querer mina no rolê.
GL/AG: Mas não tem uns caras com segundas intenções?
CDI: Para a maioria dos caras, a intenção é essa, arrumar alguma coisa com as minas e, como é pouca mina, quando aparece mina que é pixadora, vixi, os malucos ficam tudo doido!
GL/AG: O que significa pixar?
CDI: Pixar é a sua promoção existencial, entendeu? A gente escolheu não ficar no anonimato e fazer aquela autopromoção da nossa existência. É basicamente isso aí.

Djan Ivson Silva em Paris
Foto divulgação [Arquivo Cripta Djan]
Foto divulgação [Arquivo Cripta Djan]
nota
1
Ver página de Cripta Djan no Youtube com vídeos do 100 Comédia e outras produções <www.youtube.com/user/CriptaDjan?ob=0&feature=results_main>. Outros vídeos no Youtube: Pixadores em Ação <www.youtube.com/watch?v=gSpUa2oF4wo>; Bombardeio Obscuro <http://t.co/XjpqXxZh>; Escrita Urbana<www.youtube.com/watch?v=sVOcoQ8Z0HI>; Escrita Urbana 2<www.youtube.com/watch?v=bJfHXGaIRx4>.
Ver página de Cripta Djan no Youtube com vídeos do 100 Comédia e outras produções <www.youtube.com/user/CriptaDjan?ob=0&feature=results_main>. Outros vídeos no Youtube: Pixadores em Ação <www.youtube.com/watch?v=gSpUa2oF4wo>; Bombardeio Obscuro <http://t.co/XjpqXxZh>; Escrita Urbana<www.youtube.com/watch?v=sVOcoQ8Z0HI>; Escrita Urbana 2<www.youtube.com/watch?v=bJfHXGaIRx4>.
5. Cripta e a sociedade
6. Ficha técnica

Djan Ivson Silva
Foto Gustavo Lassala
Foto Gustavo Lassala
Djan Ivson Silva
Pixador desde 1996, produz e distribui filmes sobre o assunto. Seu envolvimento com o tema tem sido tão intenso que, ultimamente, se tornou uma espécie de líder desse movimento em São Paulo.
Gustavo Lassala
Professor e designer, técnico em Artes Gráficas pelo Senai “Theobaldo De Nigris”, bacharel em Design (Programação Visual) pela USJT, mestre em Educação Arte e História da Cultura pela Universidade Mackenzie. Atualmente é doutorando em arquitetura e urbanismo pela Universidade Mackenzie. É autor do livro Pichação não é Pixação.
Abilio Guerra
Abilio Guerra é arquiteto, professor da FAU Mackenzie, editor do Portal Vitruvius e da Romano Guerra Editora.
Entrevista
A entrevista com Cripta Djan realizada por Gustavo Lassala ocorreu em 07 de setembro de 2011. As perguntas foram preparadas pelo pesquisador Gustavo Lassala e seu orientador Abilio Guerra para a constituição de subsídios para a tese de doutorado, que está sendo desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Mackenzie.
6. Ficha técnica
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