quarta-feira, 4 de abril de 2012


Somos explorados – e anestesiados – pelo sistema, e violentados pelas ideias do consumo, do lixo, do moralismo, do medo e da imbecilidade, mas quando alguém resolve expor, nesta cidade “suja”, alguma logomarca da sua identidade cultural… A população não só não luta pra defender esse direito, mas realmente acredita que o que vem espontaneamente do povo é sujeira, e aplaude o Estado quando reprime as poucas vozes resistentes a isso tudo.
Quem tem dinheiro pra gastar com publicidade enche a cidade com seus apelos. Quantos “coca cola“, “melhor prefeito” e “imperdível” nós não lemos por dia? E porque é então que se fala do pixo como se a escrita de quem não tem concessão pública, nem dinheiro pra publicidade, e que se expressa fora desse padrão imposto pelos que seguem as leis da lavagem cerebral mais eficaz (estética enlatada), fosse vandalismo?
É o povo contra o povo!
O concreto da cidade recebe dos seres humanos o lixo, o vômito, o cuspe, o tão marcante sangue de morte, de parto, o cérebro dos suicidas de altos andares – que fica preso às gretinhas dos blocos por anos à fio. Se desgasta pelos nossos passos, empretece de diesel desses carros enormes de pessoas doentiamente pequenas…
E não pode suportar a escrita dos guerreiros que resistiram à única padronizada e unificante caligrafia da escola e dos jornais, ao gesto militarizado dos três dedos no lápis, aos nomes registrados e autenticados nos eternos arquivos de seres humanos engavetados!
A cidade é totalmente pixada por empresas e pelo governo.
Já pensaram nisso, os “reaça-sem-causa”?
Por cima de grafites elas vem e pixam suas propagandas que fazem a gente acreditar que é consumindo mais que seremos felizes.
uai, mas desenhar podia e escrever não
Pixador rodar por escrever sua ideia, e ser obrigado a prestar serviço comunitário e a fazer curso de Graffiti pela polícia é o fim. Você ainda acredita nessa “evolução” da palavra pro desenho? A questão é a beleza? De quantas cores você precisa que eu use pra minha ideia ter valor?
Pixos são traços de pessoas que conseguem abrir os olhos pra este mundo errado e dizer “eu existo, não tenho grana pra fazer publicidade, não posso mudar o mundo todo, mas não vou me humilhar diante dos padrões estéticos impostos pelo capital, não vou me silenciar só pra não incomodar ninguém com a verdade.”
É claro que a maioria não diz mensagens explícitas contra o sistema. Mas, da mesma forma, nem toda música precisa ser de protesto. Nem toda arte precisa ser direta pra ser resistência.
E quem pensa que uma coisa não é arte, quando quem faz diz que é, é ignorante, e não o contrário. Mas a discussão sobre o que é arte não leva a lugar algum, a não ser à intolerância e à desunião. Faça seu traço, não atropele ninguém por favor e é tudo nosso.
Tirando a discussão do âmbito do gosto, da crença, dos conceitos, passando pelo respeito… E chegando à questão política, que é o que nos interessa…
Todos temos o direito de nos expressar. E ferir a propriedade privada faz parte do manifesto da contracultura. A pixação é e sempre será marginal na sociedade do consumo. Mas precisamos tomar cuidado com tanta perseguição e intolerância. Voltamos à Santa Inquisição? Deputados roubam milhões, senadores manipulam nossos destinos e acumulam latifúndios, ruralistas consomem todos os nossos recursos naturais. Consumimos toneladas de agrotóxicos por ano. Tribos indígenas são massacradas até hoje. E a população pede leis mais rígidas para punir pixadores. Não é forçação de barra: roubam dinheiro público, roubam saúde pública, roubam nosso tempo de vida, roubam florestas e rios para fazer pasto e plantar cana. Mas são roubos que não vemos, principalmente se estivermos cegos. Um pixo não é um roubo. Fere sua propriedade porque a altera, a questiona. Mas expõe uma face da sociedade que queremos esquecer: a face da diferença, e, anexa a ela, a face da desigualdade, da hipocrisia. Ao mesmo tempo revela toda a fragilidade das crenças contemporâneas no progresso e no acúmulo como solução para tudo. É um crime muito mais grave! Não lhe tira nada… Mas deixa seu rastro, sua marca. O crime é, em si, a marca do criminoso. Só que uma marca que oferece poesia a quem cultiva o olhar.
Que libertem-se os que sabem voar!
Esses que passam o dia vendendo chã de dentro, dando aula de inglês, dando banho em Poodle, desenhando projetos descartáveis – ou brilhantes -, ou mesmo dormindo na aula de história, e que se chamam Everton, Luiz ou Claudinho, que percorrem a cidade ocupando cada canto com os olhos… e que à noite se transformam nos homens-aranha-lagartixa-morcego fortes e sem-medo, nas fadas fortes do submundo.
Heróis resistentes que garantem a cada manhã vidas menos ordinárias aos que ainda não estão cegos por completo.
Que, como os pajés e as mães-de-santo, impedem que o céu caia agora sobre esta babilônia de gente doentia, que pensa que tem tudo e tem cada vez menos.
Minha amiga: Ana Estrela

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