quinta-feira, 1 de setembro de 2011


PIXAÇÃO E PADRÃO DE BELEZA.. .
Em 4 de maio de 2007 foi publicado um texto meu no jornal Correio Popular (Opinião/Comportamento: “Por que o jovem picha os muros?”). O intuito era realizar um debate sobre pixação e padrão de beleza. Trago aqui uma nova versão do mesmo texto, feita especialmente para esse blog. 
 
Ao andar pelo Centro de Campinas, parece não ser difícil maravilhar-se com a beleza arquitetônica de prédios históricos como a Catedral, a Estação Cultura, o Mercadão, o Palácio dos Azulejos e o Jockey Club. São referenciais estéticos de um passado não tão distante que nos fazem respirar arte e história. No entanto, esses referenciais não nasceram conosco: eles fazem parte de um conjunto de aprendizados que fomos adquirindo culturalmente desde o seio da família até na escola em que estudamos na infância e juventude. Achar a cidade bonita não é um dom metafísico inato que carregamos desde sempre. As noções de beleza, ordem e limpeza que temos são frutos de um processo educacional e não podem ser consideradas as mais certas, porque não são as únicas: fazem parte de um dos inúmeros pontos de vista existentes. Uma cidade do tamanho de Campinas não tem um único referencial estético. Campinas não é a burguesia que nela vive: a cultura da cidade está muito além dos referenciais criados pela história oficial.
Tem gente em Campinas que não conhece a história oficial e, devido as circunstancias de sua localização social, não foi capaz de criar raízes e sentir orgulho de viver na maior metrópole do interior paulista. O ponto de vista de quem vive na periferia não é o mesmo daqueles que nunca saíram do Centro ou do Cambuí. Não há padrão de beleza capaz de deleitar alguém que foi privado de conhecer aquilo que é considerado arte pela burguesia. Um quadro de Da Vinci não diz nada sobre a vida da dona Tereza* que mora no Jardim São Luiz. Uma peça musical de Beethoven na vida do sr Jeremias*, catador de papelão do São José, não passa de trilha sonora de caminhão de gás. Pergunte quem foi Andy Warhol ao Gusmão*, aquele jovem grafiteiro do Jardim Aeroporto, e ele lhe responderá: “Ãh?”. E isso não quer dizer que dona Tereza, sr Jeremias e Gusmão não saibam o que é beleza. Dona Tereza faz colchas de retalhos com cores combinantes e desenhos de patchwork que ninguém consegue imitar. Peças únicas. Sr Jeremias desenha rostos de pessoas com uma técnica autodidata que ele desenvolveu na época em que se dizia hippie. Não cobra nada pelos quadros, que hoje só faz para amigos. Gusmão cria imagens hiper coloridas nos muros de seu bairro. Seus traços são tão característicos que o fizeram ser reconhecido pelo movimento Hip Hop como um grande artista.
Existem, ainda, pessoas que nem no artesanato, no desenho ou no graffiti conseguem perceber a arte. A beleza, a ordem e a limpeza presentes nos padrões estéticos burgueses não são consonantes com a realidade de pessoas pobres que já acordam olhando para o teto de um barraco escuro, esburacado, cercado por ratos e baratas que vem do córrego que passa no quintal e com a presença de um insistente odor desagradável. Não há sensibilidade artística quando os tópicos da realidade não deixam o sujeito chegar à utopia ou se engajar numa causa que recupere a sua dignidade e lhe devolva o pão, o teto e a beleza. Não há sensibilidade artística, vamos entender, no sentido que damos à palavra arte. Porque existe, sim, percepção da beleza, mesmo que essa não esteja ligada aos valores culturais da elite.
A sensibilidade dos traços nas paredes
Choque é um fotojornalista que se aproximou das tribos de pixação para documentar o trampo dessa juventude. Para ele, os pixadores fazem parte de uma “geração das ruas”. O pixo funcionaria como uma válvula de escape, comunicação fechada, já que “o cara foi excluído da sociedade e, agora, quer que ela seja excluída”, dizChoque tentando explicar o fato de as pessoas geralmente não entenderem o que os pixadores escrevem nos muros das grandes cidades [1]. Esses jovens se organizam a partir de códigos e tem até mesmo uma moral própria. Existem normas que o pixador segue tanto no padrão estético das letras e desenhos que serão imprimidos nas paredes, como em sua própria conduta individual. O atropelo, por exemplo, quando uma tribo pixa em cima do pixo de outra, é visto como uma ato de extremo desrespeito. A irmandade entre os membros desse grupo é tão intensa que o X-9 (cagueta) pode ser punido severamente pelos companheiros de trampo.
Em Campinas, consolidaram-se especialmente duas tribos de pixadores: Os Mais Imundos (Os+IM) Os Registrados (RGS), ambas com representações em outras metrópoles, como São Paulo. A rivalidade entre os dois grupos é moderada e têm um papel na sociabilidade, já que estimula a competição. O que é uma tribo de pixadores senão uma organizada rede de sociabilidade? ”Claro que existe a transgressão, mas o que explica como e por que se picha é, antes de tudo, a articulação social desses jovens”, afirma o antropólogo Alexandre Barbosa Pereira. “Ser da periferia, das ‘quebradas’ da cidade, é um aspecto muito forte na construção da identidade desses jovens. É isso o que os marca como iguais. Para um jovem de classe média, por exemplo, é muito difícil entrar nesse circuito.”  [2]
O perfil de quem que assume compromisso com uma ou outra organização de pixadores é conhecido de todos: jovem, pobre, morador da periferia, quase sempre desempregado e desprovido de alguns elementos que o mundo julga essenciais para que se possa ser visto como pessoa (mas que, na verdade, são elementos que descreveriam umconsumidor e não um sujeito). Na falta desses elementos e com o desconhecimento da existência de uma organização eficiente para a defesa de suas causas, não sobram muitas alternativas a esses jovens senão juntarem-se aos seus semelhantes e defender a causa que esses lhe apresentam (a pixação se configura como causa tão fervorosa a ser defendida como o time de futebol, a religião ou o partido político).
O que leva alguém a abandonar o (des)conforto de seu lar para enfrentar os perigos da noite em busca de uma aventura senão a necessidade de ser notado – mesmo que não entendido – ou a necessidade de estar lutando por uma causa – mesmo que não saiba defini-la  muito bem? Talvez somente o fato de estar realizando uma atividade com seus pares (a sociabilidade) já possa servir como explicação para o ato de se juntar em tribos (que não podem ser comparadas às violentas gangs inimigas dos Estados Unidos). Os pixadores não querem apenas demarcar território, mas atingir limites nunca antes alcançados e ser reconhecido pelos parceiros. Choque diz que a arte de rua é efêmera, feita para ser apagada: “a diferença é que os pichadores se ligaram onde fazer para não serem apagados”  [3].
Não nos adiantaria procurar no saudosismo de uma cidade limpa e organizada qualquer argumento para defender a preservação do patrimônio histórico-cultural de Campinas, pois esses valores de limpeza e organização são relativos. O padrão de beleza da burguesia não leva em conta a existência dessa outra realidade (a periferia). É assim que o nome de muitas tribos aparecem fazendo referência à sujeira e à marginalidade: DelinquentesArteirosAcusadosOs mais ImundosLixomania. “A referência constante à sujeira surge da marginalização da pichação na sociedade. Aquilo que não se entende é considerado lixo”, explica Alexandre Pereira [4]. Os pixadores são jovens que, como qualquer outro jovem, são criativos, revoltados e sedentos de aventura. Sua manifestação nas paredes tem sensibilidade, técnica e pode ser catártica como qualquer outra manifestação artística.
Graffiti X Pixo
Há algumas décadas atrás, tanto a pixação como o graffiti eram considerados vandalismo (o que os configurava como crime). O segundo passou a ser valorizado nas galerias de arte de todo o mundo e, a partir daí, tem sido usado como contraposição na discussão acerca do pixo. Mas quem sai de casa e observa as inscrições na parede pode perceber que essas duas formas de manifestação são muito parecidas estéticamente. Acontece que uma é mais cara que a outra. Para fazer um graffiti se utilizam muitas cores de sprays.Para o pixo basta uma latinha. Quantos jovens da periferia terão acesso ao material necessário para realizar uma grafitagem?
Paira aí uma forma de preconceito contra as manifestações dos pobres: “A burguesia que determina o que é ou não é arte. As Bienais, os intelectuais de plantão, os galeristas e o mercado funcionam como um carimbo de ‘é realmente arte’. A burguesia incorpora sempre qualquer forma de expressão artística por mais radical, antagônico e polêmico que seja”, diz o artista Gustavo Speridião [5]. Essa repulsa ao que vem da margem não é de hoje. Foi assim com o blues, o punk, o candomblé, o samba, o rap ou o funk carioca.
Talvez tenha sido pensando nisso que aproximadamente 40 pixadores ocuparam um andar inteiro da 28ª edição da Bienal de Artes de São Paulo e deixaram sua marca nas paredes brancas do pátio de exposições com frases como “Isso é que é arte” e “Fora Serra”, além da assinatura dos grupos envolvidos. Uma pixadora foi presa e ela disse que aquilo se tratava de um “protesto da arte secreta”.
Você tem fome de quê?
Na antiguidade arte e trabalho eram considerados a mesma coisa. Para os gregos, a palavra techne tinha a ver com a transformação que o ser humano é capaz de fazer da realidade. A separação que hoje realizamos de arte é técnica tem a ver com a representação que o trabalho tem no mundo de hoje: produção de riqueza para poucos. Tanto trabalhando como fazendo arte, o sujeito estaria colocando um pouco de si num produto externo a ele (objetificação). No caso da arte, o objeto ainda leva o nome do artista, o que lhe dá um caráter mais humano que o do trabalho, já que o produto fabricado pelo operário lhe é extorquido, levando consigo tudo o que o trabalhador lhe imprimiu. Se o trabalho é uma das maneiras de fazer com que o ser humano seja deveras humano (diferente dos outros animais), então quando algo em que ele deposita um pouco de si (arte/trabalho) lhe é alienado, ele perde sua humanidade.
Bolsa Família, Mais Educação, Fome Zero, Luz Para Todos, Renda Mínima e sei lá mais o quê não são programas capazes de satisfazer a fome que o povo tem de vida. Já cantavam os Titãs, em meados dos anos oitenta do século passado: “a gente não quer só comida, a gente quer comida, diversão e arte”. Questionar o lugar que a arquitetura da cidade ocupa no cotidiano das pessoas que vivem nela não significa deixar de preservar a história da humanidade. Mas subestimar a maneira com que a população da periferia manifesta sua vontade de viver, isso sim, é desrespeitar a cultura, a história e a potencialidade da humanidade. Ajudem-me a entender: queremos preservar os prédios ou as pessoas? “A gente não quer só comida, a gente quer saída para qualquer parte”.
* Dona Tereza, Sr. Jeremias e Gusmão são personagens fictícios.
(as fotos dos prédios foram tiradas na cidade de São Paulo em janeiro de 2011)
[1] entrevista disponível em: http://jovem.ig.com.br/street/noticias/2008/10/31/pichacao_tambem_e_arte_2088074.html. Acesso em 30 de agosto de 2011.
[2] artigo disponível em: http://www.usp.br/agen/repgs/2005/pags/284.htm. Acesso em 30 de agosto de 2011.
[3] entrevista disponível em: http://jovem.ig.com.br/street/noticias/2008/10/31/pichacao_tambem_e_arte_2088074.html. Acesso em 30 de agosto de 2011.
[4] artigo disponível em: http://www.usp.br/agen/repgs/2005/pags/284.htm. Acesso em 30 de agosto de 2011.
[5] disponível em: http://www.pstu.org.br/autor_materia.asp?id=9502&ida=46. Acesso em 30 de agosto de 2011.

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