Do Buraco da Paulista ao MASP: grafite e pixação retratam contradições urbanas
Todos os dias, milhares de pessoas passam pelo túnel que liga a Av. Doutor Arnaldo e a Av. Paulista sem dar muita atenção para as pinturas das paredes da construção. Mal sabem elas que são ilustrações da trajetória de uma arte que permanece no limite entre o glamour e a ilegalidade
por Ione Dias Aguiar
O Complexo Viário Doutor Antônio Bias da Costa Bueno, informalmente conhecido como “Buraco da Paulista”, começou a ser grafitado em 1987 por Rui Amaral e alguns amigos do curso de Artes Plásticas da Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP), onde ele estudava. O país estava saindo da ditadura e surgiam as primeiras manifestações da arte de rua, rebelde por natureza. Para ele, o grafite paulistano nasceu para discutir problemas urbanos e idiossincrasias sociais. “O vandalismo não é gratuito, para deteriorar. Eu fiz grafite em lugares que eu achei que podiam ser melhorados”, defende-se. Rui foi detido dez vezes e chegou a passar um dia na cadeia. Ele próprio assume que provocava as autoridades intencionalmente: ”A gente pintava na cara dura mesmo. Teve uma vez que enquanto os caras da prefeitura pintavam [os muros grafitados] de branco, a gente grafitava em cima”, conta o artista plástico. Com o tempo, Rui foi ganhando reconhecimento. Hoje, com vinte anos, na sua sexta versão, o mural azul com monstrengos amarelos e robôs que lhe rendeu seu primeiro processo criminal foi repintado, em 2009, com apoio da CET, plataforma elevatória cedida pela prefeitura e patrocínio da Suvinil.
Esse é só um dos sinais da legitimidade que o grafite vem ganhando ao longo dos anos. Em 2009, a exposição “De dentro para fora / De fora para dentro” realizada no MASP levou a arte de grafiteiros como Titi Freak, Zezão, Calma e Carlos Dias para dentro dos museus. Há também hoje galerias direcionadas à arte de rua como aChoque Cultural e a Spray Galeria. Milhões de brasileiros puderam assistir aos painéis de Rui Amaral no Big Brother, feitos pela sua produtora a convite de José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, e alguns mil puderam aprender o grafite em projetos sociais, que ele opera em parceria com a Secretaria da Cultura. Essas parcerias entre o establishment e os grafiteiros, antes inimagináveis, hoje são cada vez mais comuns. Muitos deles são convidados pela prefeitura a vestirem a cidade com novas cores. Binho Ribeiro, grafiteiro da primeira geração de São Paulo, dos anos 1980, e também pioneiro no Buraco da Paulista, é um dos que têm melhor diálogo com as autoridades. Foi, inclusive, curador de uma exposição ao ar livre no Buraco chamada Olhar Nascente, em homenagem aos cem anos da imigração japonesa – em 2008 – que reuniu 140 artistas para pintar o maior mural temático de grafite do mundo, com 2200m².
Há quem diga, porém, que essa espécie de domesticação desvirtua a arte de rua, que deve ser um agente questionador e avesso a qualquer burocracia. Aos olhos da lei, aliás, tanto o grafite quanto a pixação – com “x”, como os pixadores preferem – se enquadram como crime ambiental, com detenção de três meses a um ano. O mural em homenagem à imigração, por exemplo, é alvo de críticas por limitar algo que deveria ser livre: “Arte de rua é de quem faz arte de rua. O Buraco é um espaço que vários artistas querem que seja democrático e livre, sem tema pré-determinado. Tem de ser feito pelos artistas e não por um terceiro elemento”, afirma Rui. O próprio Binho Ribeiro guarda ressalvas à parceria com a prefeitura. Em entrevista ao Estado de S. Paulo, disse que “Os grafiteiros defendem que o mais representativo da arte de rua não é domesticado, remunerado, autorizado nem planejado”. Confirmando essas críticas, três anos após a inauguração da exposição, os murais se encontram “atropelados” – gíria para quem pinta em cima da pintura de outro – por pixadores com citações a Nietszche e críticas à Rede Globo.
Os maiores críticos da “arte de rua paz e amor”, aliás, são os pixadores. Adotando uma estética muito mais agressiva do que a do grafite, que é mais agradável aos olhos, eles “atropelam” grafiteiros e só pintam ilegalmente. São irrefreáveis, se dividem em grupos – que frequentemente entram em conflito – e valorizam muito a guerrilha, que é a gíria para a disputa de espaços para pintar. “A rua é pública, é de quem chega primeiro. Não tem nada a ver [pedir] autorização pra fazer trampo. O pixador tem que ligar o foda-se, não tem que abaixar a cabeça”, se rebela o pixador D.S., de 25 anos. Rui Amaral, reconhecido pelo apurado senso estético, defende: “A pixação que é um negócio que eu gosto e respeito demais. Eles têm uma coisa que é a mais importante, a atitude. É você se manifestar. O que leva um pixador a pixar? Não tem cinema, não tem clube, não tem nada. É uma forma de se manifestar fantástica em protesto à falta de condição do cara. Eles são heróis. Não se acomodam e estão gritando no alto do prédio.” Mas faz ressalvas: “Antigamente eu pintava retirantes pelados na casa dos milionários. Depois você fica velho e você pensa ‘será que é certo?’ Eu tenho a casa própria hoje em dia. Se pintarem a minha porta eu vou perder uma grana. Não tem como tirar (a tinta) de pedra. Eu não acho legal pintar num lugar privado. Mas e se fossem Osgemeos? Você ia vender sua casa, ia ganhar uma grana”, referindo-se à prestigiada dupla de irmãos grafiteiros Otavio e Gustavo Pandolfo, convidados a pintar a fachada do Tate Modern, de Londres, em 2008.
Os dois, aliás, estamparam as manchetes dos jornais quando no mesmo ano tiveram um grande mural, grafitado na Radial Leste-Oeste, pintado de cinza, por engano, durante as operações da Lei Cidade Limpa. Outra polêmica recente foi a prisão de onze grafiteiros do grupo ZN Lovers pela PM no começo de abril. Entre eles, foram detidos Chivitz, colaborador do programa Scrap, da MTV e sua esposa Minhau. O casal havia acabado de criar sandálias para a Havaianas. O grupo, que grafitava colunas da Estação Armênia do Metrô, sem autorização, responde por crime ambiental na Justiça. Em declaração à Folha de S.Paulo, o grafiteiro Ricardo AKN explicitou a dupla valoração social do grafite: “Num minuto a gente estava pintando e passou um carro aplaudindo. Um minuto depois nós fomos presos”.
Qual seria a solução para esse problema? Como regular a arte de rua garantindo a integridade das propriedades públicas e privadas sem censurar a manifestação artística dos grafiteiros? Rui Amaral propõe: “Você pode definir lugares que são livres. Quem quiser atropela, é assim. Lugares que não é pra ter, ficam proibidos. É um jeito do poder público dar um retorno também. Mas a liberdade de fazer a casa do fulano ou cicrano sempre vai existir, mesmo que ilegal.” Ambígua, a arte de rua permanece na corda bamba entre o glamour das galerias de arte e a marginalidade dos viadutos. Se em alguns momentos, ela se apresenta como nova integrante do status quo, em outros, segue sob a sombra do vandalismo e da ilegalidade – e parece confortável com isso.
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